Page 39 - Revista LER&Cia Edição 90
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Eu trabalho bastante. Sou provavelmente o que
mais trabalha por aqui.
Explico algo para alguém.
Atendo um telefonema.
Olho para o relógio, ansioso para ir embora.
Pesquiso sobre novos escritores e o mercado da
literatura.
Me sinto entediado. O tempo parece passar
devagar.
Pesquiso sobre imóveis caros em que eu poderia
morar com minha mulher e minha filha caso
tivesse mais dinheiro.
Por um momento, não há nada para eu fazer. Eles
não confiam totalmente no meu serviço. Não
como antes.
Sinto dor nas costas. Trabalhar nesta posição
todos os dias acaba tendo alguns efeitos
colaterais.
Eu tomo um analgésico.
Já é quase hora de ir embora.
Uma mulher chega perto de mim e diz: “Tem bolo
pra você hoje.”
Eles me chamam até a mesa de confraternização.
Eu vou até lá, sendo parado algumas vezes para
receber cumprimentos e agradecimentos.
Eu paro na frente do bolo.
A diretora está fazendo um discurso. Eu não
presto atenção.
As pessoas estão reunidas ao redor da mesa. A
maior parte deles são completos desconhecidos
para mim.
Eu percebo como estranhamente jovens alguns
deles são e, no meio deles, vejo minha filha. Ela
provavelmente já tem idade para começar a
trabalhar em um lugar como este.
Minha mulher também está aqui. Com tantas
pessoas jovens ao seu redor, percebo o quão
velha ela está. Quase tão velha quanto eu.
Eu como um pedaço de bolo.
Eu faço um pequeno discurso, afinal, é minha
festa de aposentadoria.
Finalmente é hora de ir embora para casa.
É meu último dia de trabalho.
janeiro/fevereiro 2020 39