Page 34 - Revista LER&Cia Edição 91
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Concurso de Contos
Em 2019, o Grupo Livrarias Curitiba realizou mais uma edição do tradicional Concurso de Contos. Ao todo, mais de 500
pessoas enviaram suas histórias. Entre as selecionadas está Devaneios, de Osmar da Silva de Andrade, de Londrina/PR.
Devaneios
Queria ser Rita, afinal ela é linda, todos os homens correr pra casa, lavar, passar, cozinhar, cuidar das
a queriam, vivia cercada de atenções, seu telefone crianças. Tinha um marido que vivia bêbado pelos
não parava de tocar, carrões a buscavam toda noite, cantos e que por vezes a ameaçava quebrar a cara.
festas, viagens, bebedeiras sem fim, ela sim era feliz. Definitivamente eu não quero ser a Ana.
Eu sempre quis ser a Rita, mas, espera aí; ela só vivia Doralice sim! Roupa sempre impecável, cabelos
à noite? Durante o dia não havia ninguém com ela! penteados e presos, era executiva de uma empresa,
Nenhuma amiga, parentes, crianças, nada... saía sempre de manhã com sua pasta à mão e
Seus olhos poucas vezes viam a luz do sol e quando retornava à noite, sempre com seu ar superior, como
a via, eu notava que eles eram tristes, assim sem se soubesse todas as verdades do mundo.
maquiagem ela não era nada, não tinha nada, nem Mas, como era feia a coitada, tinha um nariz enorme
ninguém, era apenas um objeto, usado durante a e usava óculos de fundo de garrafa, que davam a ela
noite e descartado quando amanhecia. Não, eu não uma aparência de bruxa do Mágico de Oz!
quero ser a Rita. Era melhor ser Beatriz, com seus 60 anos, passava
Acho que eu quero ser a Maria então, ela sim tinha seus dias na varanda em uma cadeira de balanço,
uma casa legal, com vários quartos, suas amigas agulhas de tricô na mão e ouvidos sempre atentos
ficavam por horas ali batendo papo, suas duas a tudo. Seus netos a visitavam vez em quando e se
crianças brincavam felizes pelo jardim, à tarde divertiam com suas histórias do tempo do onça. Ela
ela assistia TV e a sua geladeira, aaahh, ela era sim tinha a sabedoria que somente os anos podem
repleta de gostosuras. nos proporcionar, mas, coitada, lhe resta muito pouco
Mas, e seu marido? Quase nunca estava em casa! tempo de vida.
O dia ia se acabando e com ele Maria também se Raquel era balofa, sempre ofegante e transpirando
recolhia, jantava quase sempre sozinha, a luz do aos montes, parecia fazer um enorme esforço para
seu quarto ficava acesa por horas e horas como se carregar aquele corpo enorme e redondo pelas ruas
estivesse à espera de alguém. Mas o pobre homem e a todo momento parava ofegante diante de algum
trabalhava noite e dia, viagens, reuniões, chegava obstáculo, e tomava um impulso para saltar o meio-
exausto, dormia por horas e horas e desaparecia fio ou subir o degrau de uma escada.
novamente, deixando a casa, a esposa e os filhos. É, eu poderia ser qualquer uma dessas pessoas,
Outra opção era Ana, ela tinha 3 filhos pequenos, mo- com suas qualidades e defeitos, mas acho que vou
rava em uma casa de 3 peças, seus dias eram dividi- continuar sendo apenas uma gata persa, observando a
dos entre trabalhar de faxineira na casa de madames, tudo e a todos, da segurança da janela da minha casa.
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