Page 13 - Revista LER&Cia Edição 89
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DIVULGAÇÃO                                                                      Entrevista / LER&CIA




            final do século 18. Além disso, per­   Estudar história é uma    No Brasil, a preservação dos documen-
            corri o Brasil, visitando, entre outros   tarefa fundamental em um   tos e locais que remetem a esse período
            lugares, quilombos no estado da Pa­    Brasil que, pela primeira   é pouco valorizada?
            raíba; usinas e engenhos de cana­de­   vez em mais de 500        Infelizmente, até hoje não temos no
            ­açúcar em Pernambuco e na Bahia;      anos, convida todos os    Brasil um grande museu nacional da
            a Serra da Barriga, em Alagoas, onde   brasileiros a participar da   escravidão e se você vai nos nossos
            morreu Zumbi dos Palmares; o Vale      construção do futuro em   museus históricos, também ali o tema
            do Paraíba, em São Paulo, as antigas   um regime de democracia   é tratado de forma secundária. Acredi­
            minas de ouro e diamantes em Mi­       representativa.”          to que isso seja resultado de um pro­
            nas Gerais e o Cais do Valongo, que                              jeto nacional inconsciente, mas deli­
            foi o maior porto negreiro das Amé­                              berado, com o objetivo de esquecer o
            ricas no século 19. Em resumo, fiz  fico negreiro e o último a abolir o  assunto.
            uma gigantesca reportagem jorna­  cativeiro, pela Lei Áurea de 1888 –   Até alguns anos atrás, tornou­se
            lística, que agora transformo em três  quatro anos depois de Porto Rico e  ideia comum que os documentos da
            livros a serem publicados até 2021.  dois depois de Cuba.        escravidão teriam sido destruídos e
                                               A escravidão foi a experiência  malconservados, o que torna o estu­
            De que forma o tema ainda carece de  mais determinante na história brasi­  do do tema difícil, quando não im­
            compreensão na sociedade brasileira?  leira, com impacto profundo na cul­  possível. Isso é verdade apenas em
            Estudar a herança africana e escra­  tura e no sistema político que deu  parte. De fato, parte da documenta­
            vagista é fundamental para entender  origem ao país depois da indepen­  ção histórica, relacionada aos regis­
            a história do Brasil e as dificuldades  dência. Nenhum outro assunto é  tros de compra e venda de escravos
            e características do país atualmente.  tão importante e tão definidor para  na antiga Alfândega do Rio de Janei­
               O tema costuma ser muito popu­  a construção da nossa identidade.  ro, foi destruída por ordem de Rui
            lar no carnaval e outras manifesta­                              Barbosa,  então  ministro  da  Fazen­
            ções populares, como se vê nos des­  Por que entender essa prática é tão fun-  da, logo depois da Proclamação da
            files das escolas de samba do Rio de  damental para compreendermos nossa  República.
            Janeiro e de São Paulo. Apesar disso,  história?                    Com essa medida, os republica­
            são poucas as obras no mercado edi­  Acho que a melhor maneira de en­  nos queriam, segundo se diz na épo­
            torial que explicam o assunto em de­  frentar os desafios é pelo estudo da  ca, “apagar uma mancha” na histó­
            talhes e linguagem acessível ao lei­  história. Precisamos entender e refle­  ria brasileira, o que, obviamente, foi
            tor comum. O objetivo dessa minha  tir sobre o que aconteceu.  Uma so­  inútil porque a “mancha” nunca se
            nova trilogia é preencher essa lacuna.  ciedade ou um país que não estuda  apagou. Mas, apesar disso, restaram
            No final do século 17, o padre jesuí­  história é incapaz de entender a si  inúmeras outras fontes preciosas, re­
            ta Antônio Vieira cunhou uma frase  mesmo porque desconhece as suas  lativamente intactas e pouco explo­
            famosa. “O Brasil tem seu corpo na  raízes. Como não sabe de onde veio,  radas. Isso inclui inquéritos policiais
            América e sua alma na África”, afir­  provavelmente também não saberá o  e processos na justiça envolvendo os
            mava ele. No meu entender, é uma  que (ou quem) é hoje e muito menos  escravos e seus senhores, testamen­
            frase profética, que se torna cada vez  o que será no futuro. Por isso, estudar  tos  e  inventários  pós­morte,  certi­
            mais verdadeira com o passar do tem­  história é uma tarefa fundamental  dões de batismo, casamento e óbito,
            po. E continua atual ainda hoje.  em um Brasil que, pela primeira vez  em anúncios de fuga ou de compra
               O Brasil foi o maior território es­  em mais de 500 anos, convida todos  e venda de  cativos registrados nos
            cravagista do hemisfério ocidental.  os brasileiros a participar da constru­  jornais da época ou em documen­
            Recebeu quase 5 milhões de cati­  ção do futuro em um regime de de­  tação cartorial. Existem também
            vos africanos, cerca de 40% do to­  mocracia representativa. Só pelo co­  depoimentos  de  viajantes  que  visi­
            tal dos 12 milhões embarcados para  nhecimento será possível preparar, ou  taram o Brasil na época e deixaram
            as Américas. Como resultado, tem  qualificar, os cidadãos brasileiros para  preciosos relatos a respeito da escra­
            hoje a maior população negra do  a difícil tarefa de fazer escolhas e orga­  vidão. Tudo isso tem ajudado os his­
            mundo, com exceção apenas da Ni­  nizar a realização do país dos nossos  toriadores a reconstruírem nos mí­
            géria. Foi também o país que mais  sonhos. Isso inclui o racismo e o passi­  nimos detalhes essa grande história
            tempo resistiu a acabar com o trá­  vo social resultante da escravidão.  brasileira de dor e sofrimento.
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