Page 15 - Revista LER&Cia Edição 89
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Entrevista / LER&CIA



                                            to a atenção, e também me deixou  ca é menos trivial do que se imagi­
                                            assustado, diz respeito aos altos ín­  na. Nela aparecem diferentes visões
                                            dices de mortalidade do tráfico de  a respeito da história da escravidão,
                                            escravos e ao comportamento dos  seus acontecimentos e personagens,
                                            tubarões  que seguiam  as rotas dos  como também do seu legado para as
                                            navios negreiros. Durante mais de  atuais e futuras gerações. Os defen­
                                            três séculos e meio, o Atlântico foi  sores do 13 de maio reverenciam a
                                            um grande cemitério líquido. Pelo  Princesa Isabel no papel que lhe foi
                                            menos 1,8 milhão de cativos morre­  atribuído no século 19 pelo jornalis­
                                            ram durante a travessia e foram se­  ta e abolicionista negro José do Pa­
                                            pultados no mar. Isso significa que,  trocínio: o de “Redentora” da liber­
                                            sistematicamente, ao longo de todo  dade dos cativos no Brasil. Os aliados
                                            esse período, em média, 14 escravos  de Zumbi e do 20 de novembro, ao
                                            foram lançados da amurada de um  contrário, acreditam que a Lei Áu­
                                            navio todos os dias. Por essa razão,  rea foi apenas um ato de fachada da
                                            os navios que faziam a rota África­  elite agrária escravocrata brasileira
                                            ­Brasil eram chamados de “tumbei­  que até então defendera com unhas
                                            ros”, ou seja, tumbas flutuantes.  e dentes o regime escravagista. Por
                                               Os  cadáveres  eram  então  atira­  essa visão, a luta dos escravos brasi­
                                    DIVULGAÇÃO
                                            dos por sobre as ondas, sem qual­  leiros estaria mais bem representada
                                            quer cerimônia, às  vezes sem  ao  pelo herói de Palmares e a data de
            (mais antiga entidade de defesa dos  menos  a  proteção  de  um  pano  ou  seu sacrífico nas matas de Alagoas.
            direitos humanos, fundada em 1823  lençol, para serem imediatamente   É uma guerra que ainda está
            para  combater  o  tráfico  negreiro),  devorados pelos tubarões e outros  longe  de  acabar,  só  vai  se  resolver
            afirma que existem hoje mais escra­  predadores marinhos. Segundo inú­  pelo estudo da história da escravi­
            vos no mundo do que em qualquer  meras testemunhas da época, mor­  dão e pela maneira como vamos en­
            período nos 350 anos de escravidão  tes tão frequentes e em cifras tão  carar esses personagens e aconteci­
            africana nas Américas. Seriam 20  grandes fizeram com que esses gran­  mentos no futuro.
            milhões de pessoas vivendo hoje em  des peixes mudassem suas rotas mi­
            condições de vida e trabalho análo­  gratórias, passando a acompanhar os  Por outro lado, tivemos heranças positi-
            gas às da escravidão – ou seja, quase  navios negreiros na travessia do oce­  vas das raízes africanas em nossa socie-
            o dobro do total de cativos trafica­  ano, à espera dos corpos que seriam  dade. Como se dá essa contribuição?
            dos no Atlântico até meados do sé­  lançados sobre as ondas. Esses ritu­  A escravidão é uma história de dor e
            culo 19. Ainda segundo a Anti­Sla­  ais eram parte da rotina a bordo.  sofrimento. Mas dela também nas­
            very Internacional, a cada ano cerca                             ceu muita beleza. No livro, eu mos­
            de 80 mil pessoas são traficadas in­  No livro, você desmente mitos e traz  tro que em nossas raízes africanas há
            ternacionalmente ou mantidas sob  passagens polêmicas. Quais você des-  uma história de domínio e opressão
            alguma forma de cativeiro, impos­  tacaria?                      de um grupo de seres humanos pelo
            sibilitadas de retornar livremente e  Há hoje uma guerra no  calendá­  outro, de muita crueldade e injus­
            por seus próprios meios aos locais  rio cívico nacional envolvendo dois  tiça. Mas há também beleza e en­
            de origem. E, lamentavelmente, o  personagens e duas datas impor­  cantamento. São da África a capa­
            nosso Brasil aparece sempre com  tantes relacionadas à história da es­  cidade de resistência e adaptação, a
            destaque nesta lista suja.      cravidão. A primeira data é o 13 de  resiliência, a criatividade, o vigor, o
                                            maio, dia da assinatura da Lei Áurea,  sorriso fácil, a hospitalidade, a ale­
            Neste primeiro livro você reconta a fase  pela Princesa Isabel, em 1888. A se­  gria, a música, a dança, a culinária,
            inicial, começando pelo primeiro leilão  gunda, o 20 de novembro, da mor­  as crenças religiosas e outros aspec­
            de escravizados africanos. Teve alguma  te do herói dos Palmares, em 1695.  tos que transformaram o Brasil em
            história ou detalhe desse período que  Qual delas seria mais importante e  uma sociedade plural e multifaceta­
            mais te chamou a atenção?       digna da reverência dos brasileiros  da, marcada por cores e ritmos que
            Um detalhe que me chamou mui­   neste início de século 21? A polêmi­  hoje nos diferenciam no mundo.l


                                                                                        NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2019  15
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