Page 14 - Revista LER&Cia Edição 89
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LER&CIA / Entrevista



           Quais as principais marcas que esse período deixou
           em nossa sociedade? Diria que é uma ferida aberta
           por aqui?                                  O tema costuma ser
           O legado da escravidão está presente na rea­  muito popular no
           lidade brasileira neste início de século 21 de   carnaval e outras
           duas formas. A primeira são os indicadores so­  manifestações
           ciais, que mostram um abismo de oportunida­  populares, como
           des entre a população branca, descendente de   se vê nos desfiles
           europeus, e a população de origem africana.   das escolas de
           Isso faz com que, por exemplo, nas 500 maio­  samba do Rio de
           res empresas que operam no Brasil, apenas   Janeiro e de São
           4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos   Paulo. Apesar disso,
           de gerência sejam ocupados por negros.  Os   são poucas as
           brancos são também a esmagadora maioria    obras no mercado         Roda de conversa
           em profissões qualificadas, como engenheiros   editorial que        com as mulheres do
           (90%), pilotos de aeronaves (88%), professores   explicam o assunto   Quilombo Caiana dos
           de medicina (89%), veterinários (83%) e advo­  em detalhes e        Crioulos, na Zona
           gados (79%).                               linguagem acessível      Agreste da Paraíba.
             O segundo legado é o preconceito racial. O   ao leitor comum.”
           racismo é uma consequência histórica, resulta­
           do da escravização de milhões de africanos de
           pele negra, que resultou na construção de uma                    ro. Existiu desde o início da ocupa­
           sociedade de castas, em que alguns têm aces­                     ção portuguesa até quase o final do
           so a oportunidades de renda, trabalho, educa­                    século 19. Envolveu tanto indígenas
           ção, saúde, moradia e aos recursos do Estado,                    brasileiros quanto africanos escravi­
           e outros, não. O racismo é, portanto, uma for­                   zados. Antes de investir maciçamen­
           ma de hierarquização de poder. Esta é uma das                    te no tráfico de cativos africanos, os
           marcas mais profundas e duradouras da escra­                     portugueses tentaram de todas as
           vidão africana nas Américas: o nascimento de                     maneiras suprir as necessidades de
           uma ideologia racista, que passou a associar a                   mão de obra da colônia com escra­
           cor da pele à condição de escravo. Por essa ide­                 vos indígenas.
           ologia, usada como justificativa para o comér­                      Estima­se que na época da che­
           cio e a exploração do trabalho cativo, o negro                   gada de Cabral haveria entre 3 e 4
           seria naturalmente selvagem, bárbaro, pregui­                    milhões de indígenas brasileiros,
           çoso, idólatra, de inteligência curta, canibal,   LEIA           distribuídos em centenas de tribos.
           promíscuo, “só podendo ascender à plena hu­                      Falavam mais de mil línguas e re­
           manidade pelo aprendizado na servidão”, na de­                   presentavam uma das maiores di­
           finição do africanista brasileiro Alberto da Costa               versidades culturais e linguísticas
           e Silva. Sua vocação natural seria, portanto, o                  do mundo. A escravidão acabou, le­
           cativeiro, onde viveria sob a tutela dos brancos,                galmente e formalmente, com a Lei
           podendo, dessa forma, alçar eventualmente um                     Áurea de 13 de maio de 1888. Mas,
           novo e mais avançado estágio civilizatório. Essa                 infelizmente, continua a existir no
           ideologia, no meu entender, permanece ainda                      Brasil e no mundo todo sob outras
           hoje oculta nas formas preconceituosas de rela­                  formas, mais sutis e disfarçadas de
           cionamentos entre brancos e negros no Brasil.                    exploração do trabalho, de manei­
                                                                            ras desumanas, indignas e inaceitá­
           A escravidão, mesmo de forma velada, ainda é um   ESCRAVIDÃO     veis para os padrões éticos que jul­
           problema social no Brasil e no mundo. Como você   LAURENTINO GOMES/   gávamos ter atingido neste início de
                                                      Globo Livros
           vê essa questão?                           DE R$ 49,90           século 21. Uma organização britâ­
           A escravidão é parte do código genético brasilei­  POR R$ 44,90  nica, a Anti­Slavery International


      14  NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2019
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